O Voyeur: se a promiscuidade de Sodoma e Gomorra fosse narrada por um jornalista
- anacarolineebp
- 16 de fev. de 2021
- 6 min de leitura
Atualizado: 14 de dez. de 2021
Se a promiscuidade de Sodoma e Gomorra fosse narrada por um jornalista - mas sem técnicas jornalísticas, e sem o jornalista
Antes de qualquer observação, é necessário esclarecer que O Voyeur, livro-reportagem publicado em 2016, é uma notável fuga de padrão e até um encaixe de história no estilo jornalístico de Gay Talese, que em outras de suas obras (principalmente “A Mulher do Próximo”) fez questão de ir atrás de cada perfil de pessoa que julgava necessário para construir a narrativa, se envolver em seu ambiente e coletar informações que acreditava precisar. Neste livro, o tão aclamado “inventor do jornalismo literário” notícia a história menos trabalhosa de sua carreira: em 07 de Janeiro de 1980 ele recebeu uma carta solicitando que ele tornasse pública as crônicas de um homem residente de Denver, e assim o fez.
Não se pode negar que o autor precede o livro quando se trata de Talese, que trouxe ao mundo clássicos como “Fama e Anonimato” (conjunto de reportagens, perfis e crônicas sobre pessoas famosas e comuns que escrevera para New Yorker, Esquire, The New York Times, entre outros), “Honra teu Pai” (em que conviveu de perto com membros da máfia italiana nos EUA), o já mencionado aqui “A Mulher do Próximo” (onde investigou os hábitos sexuais dos participantes de casas de swing — chegando até mesmo a gerenciar um desses estabelecimentos e participar das festas) e “O Reino e o Poder” (relatos e histórias sobre o funcionamento interno do The New York Times, onde Talese trabalha há 12 anos).
Então, de fato, O Voyeur não deixou de ser um sucesso de vendas e de assumir seu devido posto na lista de livros-reportagem consagrados, que todo e qualquer jornalista deve ler um dia, mas é possível assumir, durante a leitura, que este não foi um dos melhores e mais certeiros trabalhos de Gay Talese - e o escritor sabe disso.
Entre falhas e acertos do ramo literário, uma história e tanto, sem dúvidas, é o que este livro nos oferece. Enquanto fazia os últimos preparativos para o lançamento de “A Mulher do Próximo”, Talese (que à época já possuía a fama que o acompanha até hoje) recebeu em sua casa uma carta anônima, que era quase um confessionário em forma de texto. Tal carta assumia que ele, o autor misterioso da mesma, possuia uma curiosidade insaciável sobre o sexo, o corpo humano e o modo como as pessoas agem nos momentos intimos de sua vida, assim, com o objetivo de “entender como as pessoas se comportam sexualmente na privacidade do seu próprio quarto”, havia comprado um motel na área metropolitana de Denver e construido uma plataforma de observação ultra secreta, que o permitia ter uma visão privilegiada de seus hospedes dentro dos quartos sem que eles sequer imaginassem isso.
Pouco tempo depois, descobriu-se (com não muita dificuldade) que o autor desta carta era Gerald Foos - que, ao contrário do que sempre enfatizava em seus relatos, não colocou muitos esforços em manter-se anônimo, deixando seu endereço nas cartas, indo pessoalmente receber o jornalista e contando toda sua história de vida antes mesmo que Talese pudesse sugerir algum termo de confidencialidade - um marinheiro aposentado, dono de Motel há 15 anos, vivendo seu 2° casamento, pai de três filhos e, também, o próprio Voyeur que dá nome a história.
É curioso a maneira como o próprio autor cita na obra que “como jornalista e curioso, não me lembro de ter encontrado alguém que exigisse menos de mim do que ele”, já que tudo foi entregue em suas mãos para apuração e publicação. Se ele tivesse pensado um pouco mais nessa observação, muitos questionamentos teriam sido evitados, principalmente quando, em 2017, um documentário de mesmo nome foi lançado na Netflix, basicamente apontando o quão básica foi a atuação de Talese nesta obra, afirmando que ele nem se deu ao trabalho de apurar e acusando Gerald Foos de ter mentido em muitos de seus relatos.
Fora isso, o livro todo consiste nas próprias páginas do “Diário do Voyeur”, as quais contém dados, histórico e informações detalhadas de centenas de pessoas que se hospedaram no Motel, quase como fontes que incrementam a história - mas sem saberem que eram fontes. A narrativa se torna curiosa por causa dessa estrutura. Pode-se dizer, sem exageros, que muito mais da metade do livro se trata de transcrições exatas do que estava escrito nas páginas do diário da fonte, já o restante traz comentários de Gay Talese em primeira pessoa, quase como uma prosa, narrando sua rotina e pensamentos enquanto lê e expõe o diário, que levou anos para estar por completo em suas mãos.
De maneira geral, a cronologia da reportagem aborda as origens do fato, quando Fools era um adolescente encantado e viciado na imagem de sua tia nua, passando para descrições detalhadas de tudo que ele via desde que comprou o motel e pelas implicações e desdobramentos do acontecimento, como o fato de o jornalista ter em mãos os relatos de algo ilegal por lei (levando em conta que, nos EUA, “Motel” não é aquele lugar especificamente destinado ao sexo, como aqui no Brasil, mas sim um hotel comum, barato e que serve de “pitStop” para viajantes. Ou seja, ele não observava apenas casais, mas também famílias completas, idosos, solteiros, equipes empresariais, etc).
A respeito do “miolo” do livro, como já mencionado, é composto por relatos detalhados de ações feitas na intimidade de um quarto (apenas um alegado assassinado aparece para mudar o foco um pouco), o que nos faz ficar no limite entre deixar subir aquele fogo durante a leitura e constantemente relembrar que estamos lendo um material criminoso.
A capa diz “uma reportagem sobre obsessão e morte”, porém, tais adjetivos seriam facilmente substituídos por "obscenidade e promiscuidade”. O livro (ou, melhor dizendo, o Diário do Voyeur - seu sinônimo) traz palavras, cenas e ideias descaradamente “indecentes”, do tipo que muitos leitores ávidos dos tempos atuais acreditam terem sido usadas pela primeira vez no mundo literário em “Cinquenta Tons de Cinza”. Quando Fools parte para seu “quarto de observação”, a linguagem utilizada e a maneira como ele mesmo narra tudo em seu diário pode ser comparada ao polêmico romance francês “Escola da Libertinagem”, ou “120 dia de Sodoma e Gomorra”, quando um homem poderoso e curioso se muda para um castelo com (vítimas) homens e mulheres de diversas idades, obrigando-os a fazer orgias e atos libertinos para satisfazer seu próprio prazer.
Por fim, duas figuras que devem ser reconhecidas (honradas ou até estudadas) são Donna e Anita, primeira e segunda esposa de Foos, respectivamente. Donna casou-se com o Voyeur antes mesmo de ser dono do motel, eram companheiros, amigos, e compartilhavam de tudo. Ela o acompanhava na época em que ele não tinha um observatório e precisava sair às ruas para espiar janelas alheias, depois, ficava ao seu lado no quarto de observação do motel e, inclusive, foi quem sugeriu que ele anotasse as experiências. Durante a leitura fica evidente que, não, ela não era uma Voyeuse, era apenas uma boa esposa, forte, bela, recatada, dedicada ao marido e uma enfermeira de guerra que já tinha visto coisas suficientes e muito piores para se assustar com “meros” fetiches sexuais.
Anita seguia o mesmo padrão de esposa conservadora, mas não era tão envolvida. Ela entrou em cena nos últimos anos de vida do Motel e sabia sobre o que seu marido fazia, mas apenas concordava e apreciava o desempenho sexual de Fools após ele retornar do observatório. Foi ela quem estava ao lado dele quando o Motel foi destruído, Fools processado (curiosamente não preso), perseguido e ameaçado de morte.
Nos poucos espaços em que se dá voz, Talese apresenta os poucos personagens secundários envolvidos de maneira extremamente descritiva e detalhista, trazendo proximidade e compreensão, nos fazendo até entender e apoiar estas esposas tão fiéis e tradicionais.
Assim, acredito ser possível concluir que a reportagem traz um contexto interessante de se conhecer - Os Estados Unidos e seu histórico de hotéis extremamente problemáticos, assombrados, criminosos e cheio de coisas a dizer - principalmente se o leitor tiver a dedicação de se aprofundar nos fatos, pesquisar e apurar para entender tudo o que antecedeu e sucedeu o momento em que Talese recebeu a carta até 35 anos depois, quando publicou o livro jornalístico. Seja para acrescentar um ponto a mais na incredulidade comum a respeito do que o ser humano é capaz de fazer ou para ter a noção do que não fazer como um jornalista renomado, vale a pena tirar esta obra da estante.

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