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Nem aqui, nem na China

  • anacarolineebp
  • 16 de fev. de 2021
  • 7 min de leitura

Atualizado: 14 de dez. de 2021


No dia em que finalizei a leitura desta obra, havia perdido o sono bem cedinho, por volta das sete horas da manhã, e não consegui mais dormir, então, decidi tomar café e aproveitar para ler mais um pouco do meu livro, o "As boas mulheres da China". Naquela noite, posso afirmar que me deitei para dormir como uma mulher completamente diferente.

Honestamente, não sei nem descrever o universo para o qual sou carregada quando leio uma página sequer da obra da Jornalista Xinran — e nem sei quantas vezes já pesquisei o nome dela no google, tentando olhar pra seu rosto e descobrir de onde ela tirou forças pra fazer tudo aquilo — só sei que não é nada confortável. Enriquecedor, mas nada confortável.

Em partes, é entusiasmante a sensação de estar bebendo conhecimento que esse livro trás em muitas páginas. Como uma amiga me disse quando mandei para ela mais uma foto de uma página do livro que me impressionou, "o que mais impressiona é a semelhança entre elas, na China, e a gente, aqui no Brasil. A língua delas é completamente diferente da nossa, os costumes também, então é de imaginar (pelo menos eu imaginava) que não seria fácil se identificar com muitos pensamentos, narrativas e até pessoas, por diferenças mesmo, resumidas em nossa diferença de língua, mas lendo essa página de um livro chinês traduzido para o português, eu fico 'de cara', porque somos muito iguais. Mesmo vivendo em extremos opostos do mundo, a gente ainda é mulher".

Para mim, a questão da diferença de linguagens não me pareceu um grande empecilho, já que estou mais do que acostumada a vivenciar entendimentos e relações que ultrapassam barreiras idiomáticas, mas também me passou pela cabeça o abismo que eu encontraria para relacionar alguma vivencia minha com a de mulheres chinesas. Quando peguei este livro, estava ansiosíssima para começar ele logo, mas eu tinha em mente que, por se chamar "BOAS mulheres da CHINA", eu encontraria relatos de sofrimentos dentro do contexto e padronização social que temos dos chineses aqui no ocidente. Imaginava ver narrativas mais relacionadas aos diversos dogmas, preceitos, tradições e crenças que sabemos (ou que imaginamos saber) que a China passa de geração em geração, porém, a cada página e a cada discurso discutido nos capítulos eu sentia que era construída uma ponte direta entre São Paulo, Brasil, 2021, e Nanquim, China, 1985 (data das primeiras entrevistas feitas pela autora). Obvio, em cenários diferentes e, obvio, em graus diferentes, mas, quando eu menos esperava, me pegava balançando a cabeça repetidamente e concordando com as constatações feitas por algumas daquelas mulheres, dizendo "SIM! SIM, É ASSIM QUE ME SINTO" e "SIM! PORQUE ELES AINDA NÃO PERCEBEM E NÃO MUDAM ISSO?" — em uma distância de uns 30, 40 anos entre nós.

O ditado "nem aqui, nem na China" nunca me pareceu tão racional e, ao mesmo tempo, equivocado. Dentre os três capítulos do livro que, em uma visão geral, mais mexeram comigo, posso dizer sobre o "A Menina que Tinha uma Mosca como Animal de Estimação" que, nem aqui, e nem na China as crianças estão livres da maldade humana. Sendo este o capítulo (infelizmente) visto como o grande chamariz do livro, foi o primeiro a me trazer dó, tristeza e sensação de impotência ao ver mais um dos casos que tanto vemos nas manchetes hoje em dia, que tanto vemos nos programas criminais — só que narrado de forma particular, não contado por outros, após a tragédia já ter sido revelada, e posso até arriscar dizer que em uma escala ainda mais absurda — me fazendo refletir sobre o que é condição de vida, o que é alegria, e sobre como eu queria voltar para 1972 e mudar algumas coisas. Ao menos, penso eu, gostaria de alterar a conformidade que os relatos deste capítulo carregam; gostaria de dizer-la para lutar, para manter seus sonhos vivos e implicar penalidades àquele que tira a paz de uma criança, não à seu próprio corpo e mente já fragilizados.

O segundo destes capítulos, chamado "A Universitária", posso considerar uma enxurrada de luz e claridade sobre minhas próprias ideias, sendo este o qual eu me referia em grande parte quando comentei sobre concordar repetidamente com o que era dito, talvez por eu ser uma universitária como a que conta a história. Nele, percebi que tanto aqui, quanto na China as mulheres são palco para qualquer expectativa particular masculina que é quebrada pelos próprios homens, "mulheres com excesso de trabalho e homens que lamentam suas ambições insatisfeitas, responsabilizando a esposa por isso". Grande parte dos problemas, dos massacres físicos e psicológicos para com a mulher é causada por ser humanamente impossível atendermos a todas as demandas, em todos os quesitos, que os próprios homens não conseguem atender, e passam para nós. Inclusive, foi o capítulo que me fez grifar partes de um livro pela primeira vez (sinto que algumas leitoras ávidas das minhas rodas de conversa me matariam por isso, mas, sinto muito, a ansiedade acadêmica foi maior).

Já o terceiro que, sem dúvida alguma, me marcou e me abalou, é o motivo por eu ter parado para escrever e por em ordem meus pensamentos naquele dia em questão. O "as mães que sofreram um terremoto" traz relatos de mulheres sobre os ocorridos no terremoto de Tanghan, em 1976, que deixou mais de 300 mil mortos e até hoje é um dos piores em relação a perdas (ao mesmo tempo em que é o que mais sofreu pelo descaso. Em meio à crise política e corte dos meios de comunicação, ninguém da capital ficou sabendo deste terremoto por dias e dias, ninguém foi amparar, até nações estrangeiras questionarem a China sobre os fortes abalos que foram detectados pelos radares). Esse capítulo quase não tem analogias tiradas dele, quase não tem reflexões e quase não tem constatações. Só tem dor. Muita, muita dor. Eu, que considero muito a opção de ser jornalista investigativa e costumo treinar técnicas de escrita de reportagem a partir de dados sobre casos criminais, desenvolvendo certa frieza ao puxar casos em aberto para tentar resolver por conta e, muitas vezes, me deparando com imagem de corpos, não consegui LER a primeira palavra da frase incompleta que tinha continuidade em uma página seguinte. Todo o senso de distanciamento da situação desapareceu com o peso da realidade contida naquelas páginas. Preciso dizer que fechei o livro e não consegui sequer encostar nele, não queria mais ler, tapei minha boca de tanta ânsia e chorei litros. Chorei até cochilar, mas acordei uma hora depois, ainda chorando e atordoada com meus pensamentos. Não posso negar, de verdade e mais uma vez, que é mais um dos ocorridos como os que vemos constantemente no jornal e nas redes, mas o contexto em que ele ocorreu me deu náuseas como nunca senti e tirou toda, toda a minha paz. Aquele último milímetro de esperança e ingenuidade se esgotou completamente naquele minuto, e para alguém que só costuma chorar com livros de romance, aquelas lagrimas de dor ardiam no fundo da alma.

Naquele dia, logo percebi que havia perdido a fome e o sono. A última e única vez que me senti assim foi quando assisti o filme documentário "Beasts of no Nation", baseado em um livro nigeriano que conta sobre um garoto de pouco menos de 10 anos, se não me engano, que perde a família na guerra civil africana e, nesta idade, vira um menino-soldado guerrilheiro. Lembro que perdi a razão e a esperança por uns bons dias, agradecia por cada pedacinho da vida que tenho e pela realidade em que vivo, mas também questionava a terra em que vivo, praguejava meu conhecimento e capacidade intelectual de tomar conhecimento sobre isso, refletir sobre isso e querer fazer algo sobre isso.

No dia em que finalizei o “As boas mulheres da China”, me senti da mesma maneira. Horrorizada, grata pela minha realidade, por meu contexto social e pela minha criação, porém, não abominei minha capacidade de entender e de querer agir. Como mulher, aqui ou lá na China, me senti na obrigação de agregar estas histórias aos meus aprendizados e de mudar algo com elas, seja a minha própria visão ou o meu entorno, por menor que isso seja em comparação com todas as vidas que existem no caminho entre eu e Xangai. Quero ser, ao menos, alguém que ouviu os lamentos e as superações de mulheres e que não deixou em um arquivo empoeirado, não fez estatísticas, mas que se projetou para a vivencia dela, sentiu na alma as aflições, se rasgou de dor e, mesmo assim, levou isso adiante, até as bocas, ouvidos e peles desse mundo — porque, como diz um autor muito querido por mim, que pavimentou a estrada literária em que me encontro agora, "esse é o problema da dor, ela PRECISA ser sentida".

Após muito refletir, questionar e me enfurecer com o fato de que foram poucos, quase inexistentes os momentos na história em que o sexo feminino pode viver sem temer o simples sexo oposto ou sofrer nas mãos destes, acredito que o dilema final que este livro nos traz – fora todos os “porquês” a respeito da maldade humana e da assimetria de sexos, e a admiração pela força e persistência feminina, independente do contexto – implica, mais uma vez, no ponto do conhecimento. É preferível ser ignorante e feliz, como as mulheres da colina dos gritos, que não apenas se satisfazem como se realizam completamente apenas com a possibilidade de dar alguns passos e comer um ovo; ou estar a par da realidade e da verdade, mas carregar o peso da informação, como a própria Xinran, que derramou milhares de lágrimas de amargura e lutou com a consciência das consequências de ser uma mulher até, no mínimo, o dia em que finalizou este livro ? Respondendo esta pergunta junto à pergunta principal desta obra, que praticamente motivou toda a pesquisa feita, acredito que esta leitura mudou meus pensamentos e horizontes para passar a acreditar no seguinte: a felicidade mais básica e essencial para uma mulher é a possibilidade. A possibilidade de escolha, de companhia, de conhecimento (e até a falta dele, quem sabe), de voz, de veste e, principalmente, a possibilidade de mudança.




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