Cultura do Cancelamento: a onda de intolerância combatida com intolerância
- anacarolineebp
- 22 de dez. de 2021
- 4 min de leitura

É incontestável o fato de que o âmbito social sempre foi envolto por uma nuvem de julgamentos populares, de apontamentos públicos e conflitos causados por opiniões discordantes. Da mesma maneira, também é de conhecimento geral que os veículos de comunicação não apenas informam, como também influenciam o público e incentivam uma tomada de partido certeira sobre os assuntos mais quentes do momento. Assim, pelo mesmo motivo de não vivermos em uma sociedade utópica em que tudo se resolve com um debate pacífico e ético, a mídia da comunicação acaba tendo um papel significativo quando se trata de “colocar lenha na fogueira” da intolerância humana para divergências, o que é atualmente conhecido como CULTURA DO CANCELAMENTO.
Por mais que o nome tenha se popularizado de 2018 para cá, principalmente com os recentes acontecimentos em relação às atitudes da rapper Karok Conká — que tanto cancelou e acabou por ser cancelada — na vigésima primeira versão do programa BBB, promovido pela Rede Globo, o ato de riscar de sua lista particular de referências alguém cujos valores diferem dos seus não é algo exclusivo da era das redes sociais. Muito pelo contrário. No ano de 1966, por exemplo, o próprio John Lennon, ex-membro da gigante banda The Beatles, enfrentou uma situação parecida com a que vemos constantemente no Twitter ao mencionar em uma entrevista que “os Beatles eram mais populares do que Jesus Cristo”. Mesmo que ele estivesse se referindo a notável queda da religião entre os jovens durante a década de 60, em comparação com o aumento do número de fã-clubes adolescentes, sua infeliz escolha de referências logo resultou em uma leve queda nas compras dos discos do grupo e em uma audiência menor nos programas de auditório que eles apareceram em seguida. Entretanto, estas demonstrações de desaprovação ocorreram apenas por alguns dias e em uma porção da região sul dos Estados Unidos, visto que a comunicação e meios de visibilidade pública não eram tão amplos quanto os de hoje. E é aí que entra o papel dos atuais veículos e portais de comunicação, que funcionam, em boa parte, como uma central de exibicionismo.
Voltando aos polêmicos Reality Shows transmitidos pelas emissoras, recentemente circularam acusações à produção da Rede Globo, alegando que as edições do material que vai ao ar passam por diversas manipulações na intenção de disseminar determinados perfis “a gosto próprio”, alimentando a ideia de uma relação formada por antagonistas x protagonistas e, claro, ganhando com isso. O mesmo tipo de denúncia é constantemente direcionada a telejornais e redações, sob a justificativa de que a falta do senso de responsabilidade e imparcialidade das mídias, principalmente entre os jornalistas, tem promovido uma geração de espectadores cada vez mais intolerantes e sem a capacidade de discernir sobre até onde uma opinião deve ser levada antes de ser imposta ao próximo como um fato concreto e resultar em ataques. Contudo, por mais que seja importante a busca por neutralidade e objetividade na comunicação, estas não existem em algumas áreas, principalmente na do entretenimento, assim como afirma a Doutora em comunicação, professora universitária, crítica literária e repórter Lilian Crepaldi, que nos concedeu uma entrevista sobre o quão relevante é a mídia comunicacional nesta realidade canceladora: “Você sempre irá pender para um lado. Toda narrativa sempre tem um caminho, uma mensagem, e no entretenimento isso fica muito claro, então, o profissional precisa ser, sim, o responsabilizado, principalmente na área do jornalismo. Quando você extravasa o seu papel de jornalista e aparece como agente criador de caos, você tem que ser colocado no seu lugar. Creio que as pessoas são e devem ser responsabilizadas, as empresas jornalísticas costumam, sim, ser punidas quando ultrapassam limites, basta saber o que é este limite, do que eu posso falar e se isso pode ferir ou agredir alguém.”
Por outro lado, o anonimato e a instantaneidade oferecidas pelas redes sociais também alimentam o ato de “cancelar” atitudes, chegando ao ponto em que tudo se torna uma corrente agressiva de apontamentos sem fundamento, geralmente baseados em outras levas de opiniões que se formaram a partir da influência midiática, gerando, assim, um “efeito manada”, caracterizado pela tendência humana de repetir ações feitas por outras pessoas — principalmente as mais influentes. A partir deste ponto, o “telefone sem fio” e o mar de julgamentos disparados limitam a capacidade de ponderar e argumentar, além de reprimir as possibilidades de aprendizado e retratação por parte de quem foi apontado como errado.
Ainda sobre o poder que a mídia e os juízes populares “sem face”, também conhecidos como internautas, têm de ascender (lê-se “passar pano”) ou destruir alguém com base em um comentário, a professora defende que a cultura do ódio, em que as fronteiras de apenas deixar de engajar são ultrapassadas, sempre existiu, acrescentando que “o cancelamento, a meu ver, é isso: deixar de seguir. Agora, quando começa a propagar ódio, a pessoa se torna uma criminosa. Daí, você parte para os crimes digitais, que devem ser combatidos. Tem leis para isso, não uma, mas várias leis para o combate a estes crimes digitais e, neste ponto, já não cabe a nós julgarmos.”
Por fim, é importante concluir que qualquer exposição midiática possui seu lado positivo e o negativo, como a maior liberdade de expressão, mas também a possibilidade de ficar sujeito ao escrutínio público — do qual, honestamente, ninguém passa sem uma boa puxada de orelha. Crepaldi ainda ressalta que “as pessoas de hoje foram criadas com a violência como solução, então, a maneira de curar uma geração destas é trabalhar com a próxima, ou ainda com a outra, daqui a vinte ou quarenta anos, colocando valores como o diálogo, a liberdade, a tolerância e, mais do que isso, a compreensão. Compreender e ter empatia pelo outro”, traduzindo a importância de se trabalhar com a base, com os valores e costumes apresentados a uma criança, fazendo com que esta entenda que o outro é sempre diferente, que não somos todos iguais e que, na realidade, esta é a beleza. Não é possível enquadrar alguém ou impor opiniões, mas a possibilidade de se abrir para coisas novas, de aprender a ouvir, argumentar e, claro, adquirir conhecimentos além dos transmitidos pelas mídias sempre esteve em nossas mãos (tal qual o nosso direito de utilizar as leis a nosso favor para punir intolerâncias), resultando no princípio básico de tratar o outro como gostaria de ser tratado e de ficar atento ao que é compartilhado.
Comments