Crônica: Se eu fosse um bicho, seria a depressão
- anacarolineebp
- 21 de dez. de 2021
- 3 min de leitura
Atualizado: 22 de dez. de 2021

Sentada em minha cadeira, de frente para a janela escancarada que se abre para um aglomerado de casas iluminadas pelos pontos de luz que começam a surgir com o cair da tarde, vivo um momento de plenitude carregado de comoções. Mas, o céu dominado pela Golden Hour sugestivamente me carrega para uma onda de nostalgia e descobertas ocasionais sobre eu mesma, não tão positivas quanto soam. Assim, minha mente divaga para o tempo mais distante que existe: a atualidade.
Há um ano e seis meses tenho a possibilidade diária de refletir sobre esta vista, mas nem sempre a aproveito – opto inconscientemente por me afundar nas cobertas bagunçadas e repletas de ácaro por horas e mais horas – e apenas idealizo como anda o mundo lá fora. Além das minhas paredes, são publicadas notícias e mais notícias sobre a saúde mental dos animais encarcerados (nós), mapeando estudos do cérebro humano como se descobrissem novas espécies terrestres.
“Pandemia tirou até 2 anos de vida de cada um, a maior redução desde a 2° Guerra Mundial”, noticia O Globo; “Com a pandemia, pessoas passam até duas horas a mais na cama”, publica a BBC, e o Fórum Brasileiro divulga que a taxa de suicídios teve um aumento de 0,5% em comparação com o ano pré-apocalíptico. Com estes tópicos em mãos e os olhos no horizonte, rapidamente me identifico como um destes materiais de estudo social – o bicho Depressão.
O corpo paralisado e a mente a mil, gritando palavras tão hostis a meu próprio respeito que nem um Hater pode se sair melhor. Uma tempestade de pensamentos que variam entre perguntas, respostas, incertezas, pendências, metas, faltas, remorsos, tudo o que já fui e que poderia ser descendo pelo ralo, gritos aleatórios e um vasto silêncio de sentimentos catatônicos. A palavra “morte” rabiscada diversas vezes no caderno jogado um pouco ao lado. Se olho, neste momento, para a direita, me deparo com a faca (e o queijo, brincadeira!), e se olho para a esquerda me recordo das vezes em que passei muito mais de duas horas deitada, perambulando pelo meu vazio como um sinistro. O estereótipo perfeito para os tempos modernos. Me sinto menos culpada.
Porém, como conclui o psiquiatra José Manoel Bertolote, “A pessoa numa crise suicida é altamente ambivalente e, em geral, não quer exatamente morrer, mas pôr fim a uma depressão insuportável”, uma súbita sensação de entendimento me domina. Vejo dois ou três passarinhos rodopiando pelos céus, logo à frente, e me derreto. Voam entre si como numa dança, tão perto e tão longe, como sombras, com sua coloração verde quase indistinguível sob o pôr do sol. São periquitos verdes (lembro da minha avó me dizendo “viu um periquito verde?” toda vez que eu começava a rir sem motivo aparente) e, agora, eu apenas desejo ser um deles.
Não necessariamente esta espécie de periquito da família Psittacidae do Brasil, mas sim esta ave, neste momento, neste contexto. Esta ave que voa livremente pela luz crepuscular do céu alaranjado e que se exibe pelas janelas alheias; que, mesmo tendo perdido seu habitat natural, se equilibra em meio a fios telefônicos e cabos elétricos como se estivesse no conforto de seu ninho, e que se apruma nos galhos de alguma árvore ao anoitecer, esperando que o dia seguinte comece para que ela, da mesma maneira que faz hoje, voe livremente e desbrave novas moléculas do mesmo ar, permitindo que outros de nós tenham momentos de epifania enquanto lamentam sua mera condição humana.
Se eu fosse um bicho, seria a depressão, mas, se eu pudesse ser um bicho, gostaria de ser esta ave.
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