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Adoração (n)à mídia

  • anacarolineebp
  • 22 de dez. de 2021
  • 3 min de leitura


Partindo do princípio da laicidade previsto pela Constituição Federal de 1988, um Estado é considerado laico quando exerce legalmente duas premissas — das quais não hesitaremos em evidenciar, a partir de agora, a infidelidade na aplicação. A primeira envolve promover oficialmente a separação entre Estado e religião, não permitindo a interferência de correntes religiosas em assuntos estatais, já a segunda exige não privilegiar uma ou algumas religiões sobre as demais, o que é facilmente contradito com o simples ato de acompanhar o maior meio de promover movimentos, valores, produtos e ideias: a mídia do entretenimento.

Apenas se tratando do âmbito político, envolvendo ainda os períodos de campanha eleitoral televisionada, são computados 105 deputados e 15 senadores “defensores da família” formando uma bancada evangélica no congresso nacional, restringindo 20% deste a uma só religião. Estes apresentam propostas legislativas restritivas não apenas a propagação opcional de ideias pertencentes a outros grupos religiosos, como também aos direitos reclamados por movimentos de mulheres, negros, LGBTQIA+ e muito mais, utilizando de discursos focados em morais evangélicas em seus debates públicos.

Se paramos para passar uma tarde, em qualquer dia da semana, assistindo à programação da TV aberta, não será uma surpresa encontrar ideações de cunho religioso em transmissões que, originalmente, deveriam ser focadas em política, em investigação, em humor, culinária, reformas ou entretenimento de auditório, e não vai ser difícil identificar para qual nicho religioso específico todas estas ideações se voltam. Anúncios da Jequiti são seguidos de passagens do livro Eclesiastes, do Antigo Testamento cristão, e o Datena toma como base algumas de suas conclusões sobre crimes e suas devidas penalidades o mantra "quando Deus quer" e "se a pessoa não tem Deus no coração", fora os bordões predominantemente católicos e a quantidade de canais destinados especificamente para "shows de fé" de padres e pastores.

De acordo com dados da Ancine (Agência nacional de Cinema) divulgados em junho de 2017, programas religiosos ocupam uma média de 21,1% da programação na TV aberta brasileira, o que seria consideravelmente aceitável em alguns pontos de vista, se não fosse o fato de que é impossível encontrar transmissões de conteúdos Umbandistas, Espíritas, Budistas, Wiccanos ou Islamitas no repertório religioso das principais emissoras nacionais. Os líderes na transmissão deste tipo de conteúdo são a CNT, com 89% da programação focada no gênero, e a Rede TV, com 43,4% de sua grade destinada à religião, seguidas pela Record (21,7%), Band (16,4%), Gazeta (15,8%) e SBT, que apesar de não apresentar dados concretos, afirmando não vender espaço na programação para organizações de credo, não deixa de narrar versículos da bíblia católica entre os intervalos do Raul Gil e de permitir que seus contratados ofereçam orações nos programas de auditório.

Além disso, saindo um pouco das rotineiras exibições de cunho cristão e evangélico nas telinhas, as redes sociais também vêm manifestando intenções de desenvolver portais destinados a religião, tendo o The New York Times divulgado, em julho deste ano, o interesse do Facebook em se afiliar a igrejas dos Estados Unidos, dialogando para melhorar a transmissão de cultos, canais religiosos e até formas de rentabilização para ambos. Tais investidas foram confirmadas por Sherryl Sandberg, diretora de operações da Gigante das redes, que afirmou sobre o Facebook estar tentando desde 2018 uma aproximação com organizações de fé, junto a outros líderes que confirmaram o contato para selar assinaturas exclusivas de conteúdos de bispos, por exemplo. Observando as poucas mudanças que tivemos desde 1890, quando o Brasil era um Estado confessional, até aqui, já podemos imaginar para quais grupos serão os espacinhos especiais da plataforma, não é mesmo?

Em conclusão, pudemos pontuar, em poucas palavras, que dentre os 96 Estados laicos existentes no mundo, a América faz parte dos que evidentemente não possuem o costume de cumprir com os direitos humanos. Em pleno século XXI, dados como os do disque 100, o serviço de proteção aos direitos humanos, que apontam sobre as mais de 354 denúncias de intolerância religiosa apenas nos primeiros meses de 2019 - com um aumento de 67,7% nos últimos anos - ainda são mais do que frequentes, também apontando que a maior parte dos relatos foram feitos por praticantes de religiões de matrizes africanas. E, estes, junto aos grupos muçulmanos, formam quase a totalidade dos conjuntos étnicos que afirmam não se sentirem confortáveis ou representados pelas exibições feitas na mídia do entretenimento. Tais ocorrências podem formar toda uma cadeia de irregularidades ao serem postas ao lado dos outros atos de desrespeito aos direitos de liberdade de expressão totalmente normalizados cometidos tanto pela mídia da adoração quanto pelo governo e pela população comum, porém, se formos pontuar cada uma das leis constitucionais brasileiras que não são devidamente aplicadas e verificadas, não terminaríamos essa conversa hoje.




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